Crítica | O Que Ficou Para Trás – Drama racial em pesadelo cinematográfico inquietante

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O terror é realmente uma obra de arte completa. Apesar de não se conhecido por suas sutilezas, possui tudo que os outros gêneros possuem: romance, drama familiar, comédia. Mas, por outro lado, tem o que nenhum outro gênero tem: a atmosfera de medo. Em sua essência mais honesta, confronta questões humanas, como o medo da morte e a vontade de viver, e utiliza todas as suas artimanhas para impactar, mostrar o lado mais perverso da sociedade e ainda, de quebra, assustar ao ponto de tirar seu sono. Digo isso pois é dessa forma que ‘O Que Ficou Para Trás’ (His House), novo Original Netflix, se comporta após as portas abertas pelo cinema de horror racial de Jordan Peele. Seu roteiro criativo e medonho foca no horror que está entrelaçado na forma como imigrantes são tratados em países que buscam asilo.

A trama e o elenco

Com enorme maestria e sensibilidade, a trama de O Que Ficou para Trás acompanha um casal de refugiados de uma zona de guerra no Sudão do Sul enquanto busca asilo na Inglaterra. Além de enfrentarem os horrores da viagem sem segurança pelo mar e o país racista que os recebe de má vontade, ainda se deparam com o pior: ter que viver em uma casa mal-assombrada sem poder deixar o lugar em hipótese alguma. Dessa premissa, o drama social assume boa parte do tempo e desenvolve uma relação intensa entre os personagens e a comunidade branca que são obrigados a conviver e aturar para não sofrerem as consequências de terem que retornar para casa e, dessa forma, para a morte eminente. Dentro dessa narrativa angustiante e triste, que para eles parece ser um recomeço, o drama e o terror se misturam brilhantemente enquanto a casa, os traumas do passado e a dor da perda começam a deixá-los loucos naquele lugar hostil disfarçado de acolhedor.

O roteiro, inteligente e astuto de O Que Ficou para Trás, divide a dinâmica entre os dois personagens e explora suas diferentes vivências, assim como as diferentes influências que a casa e a comunidade exercem sobre cada um. Por um lado, Sope Dirisu (O Caçador e a Rainha do Gelo) vive um homem atormentado pelas escolhas que precisou fazer para sobreviver e a casa exerce poder em seus sonhos mais obscuros, por outro, Wunmi Mosaku (a Ruby de Lovecraft Country) vive a mãe da família, mulher negra que não consegue superar o luto e que abraça a assombração para se sentir “perto” do que perdeu. Os dois estão sensacionais nos papéis e passam todo o pavor e emoção que a trama necessita, fora o fato de que conseguem sustentar o filme nas costas sem muito esforço, por conta do enorme carisma de ambos.

Direção

O trabalho do novato Remi Weekes, que venceu o prêmio NHZ de cineasta emergente no Festival de Sundance em janeiro, é de arrepiar com tamanha elegância. Apesar da pouca experiência com cinema, o diretor consegue fazer, já de cara, o mais difícil: mesclar drama com terror sem que um possa ofuscar o outro, algo que Peele (Corra! e Nós) faz tão incrivelmente bem. Sem dúvida, Weekes é aluno da linguagem de Peele e provou ser um cineasta para ficar de olho nos próximos anos. Sua condução é enérgica e sutil ao mesmo tempo, o drama emociona, através do tempo que deixa a câmera no rosto dos atores, e o terror apavora, por conta do uso adequado de jump scares, apesar de sim, ser exagerado nessa técnica.

A atmosfera obscura de medo é muito boa e chama atenção por ser um clássico filme de “casa mal-assombrada”, porém, sem que o lugar seja uma mansão do século XIX. Aqui, é apenas um apartamento simples e pequeno, abandonado em uma área precária da Inglaterra que serve como “abrigo”, oferecido pelo Governo para pessoas refugiadas. Não há nada de absurdo ou megalomaníaco e, ainda assim, o terror é sinistro e muito bem construído. Os fantasmas do lugar, feitos através de lendas africanas, não apenas assustam, como também são humanizados e cheios de sentimentos, algo parecido com o que ‘A Maldição da Residência Hill’ faz.

O desfecho de O Que Ficou para Trás, por sua vez, propõe uma viagem mais densa, que afasta o drama palpável e mergulha em um horror lovecraftiano no estilo ‘Lovecraft Country’. Esse caminho, bem mais previsível e que acaba deixando as sutilezas de lado, ainda que seja realmente assustador e gráfico, certamente é o ponto mais fraco do filme, assim como uma reviravolta difícil de engolir. O vilão até impõe medo, mas não o suficiente para encerrar aquela história com a perfeição que havia começado.

Conclusão

Dessa forma, ‘O Que Ficou Para Trás’ surpreende por ser um terror que foge do convencional e, com camadas profundas e densas, utiliza o drama social e a crise dos refugiados como combustível para criar fantasmas assustadores e uma atmosfera de medo sublime. Assim como ‘Corra!’ e ‘Lovecraft Country’, é um frescor ao gênero e prova como o terror é completo, como gera reflexão e debate sem medo algum de expor a perversidade e o racismo da sociedade. Talvez não seja para todos os públicos, talvez não faça o devido sucesso, mas uma coisa é certa: é um pesadelo cinematográfico inquietante que você precisa assistir.

Nota: 9

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