Novas gerações significam também novas narrativas e reparos históricos, afinal, o mundo mudou depressa e as crianças de hoje, assim como o cinema, não fazem mais parte de um universo onde o modelo ultrapassado de uma Disney tradicionalista funciona. Claro, ainda que a casa do Mickey estivesse também replicando a consciência de sua época, através de princesas frágeis e heróis másculos e protetores, acabou que o estúdio estabeleceu um padrão de histórias que ocuparam as salas de cinema por décadas e influenciaram o comportamento de muitas crianças. Felizmente, a sociedade mudou e essa mudança permite que filmes como ‘A Caminho da Lua’ (Over The Moon), nova animação da Netflix, possa anular, de uma vez por todas, o “modelo Disney”, assim como ‘Shrek’ uma vez serviu para pôr o pé na porta e ridicularizar os contos de fadas tradicionais, algo que abriu caminho para animações como ‘Enrolados’ e até mesmo ‘Frozen’ fazer sucesso e quebrar os padrões estabelecidos.
A trama e o elenco
Na proposta doce e inocente, Fei Fei (voz de Cathy Ang) é uma garotinha chinesa que sofre uma grande perda na infância e precisa lidar com o seu luto. Alguns anos depois, com seu pai já formando uma nova família, percebe que necessita fazer uma viagem para a lua para poder provar para ele que uma deusa mística, cuja sua mãe era devota, habita o lugar. Nessa aventura espacial de autoconhecimento e amadurecimento, aos moldes de ‘O Pequeno Príncipe’, a animação explora uma explosão de sentimentos e sensações no espectador, enquanto valoriza, com muito apreço e carinho, a cultura e as tradições chinesas.
Ainda citando Disney, é claro que ‘Mulan’ caminhou para que ‘A Caminho da Lua’ pudesse correr, afinal, são poucas animações que mergulham tão lindamente na cultura asiática e, mesmo com todos os problemas, ‘Mulan’ faz parte de uma revolução que estava ganhando força nos anos 1990, cujas princesas não precisavam mais de um homem para lhes salvar e eram narradoras e donas de suas próprias histórias.
Neste filme, a China é mostrada com bastante sensibilidade, cores e vivacidade, algo que se expande para o gráfico da animação, também feita em 3D, padrão que hoje é mais consumido pelas crianças. Uma mistura de anime com o visual da Pixar. É tudo tão colorido e absurdamente belo, que enchem os olhos de afeto e simpatia, como há muito tempo um filme não se prestava a fazer.
Além da erupção de cores neon, em contraste com uma lua escura e cinza, a trama é carregada de metáforas sobre amor, morte, reencarnação e sentimentos diversos, já que acerta plenamente no humor, com ótimas tiradas, assim como sabe desenvolver momentos belíssimos de drama, aliás, muito parecido com o que o longa (em live-action) ‘A Despedida’ consegue fazer. No elenco de dubladores, nomes como John Cho (Buscando…), Ken Jeong (Se Beber Não Case!) e Sandra Oh (Killing Eve) se destacam com perfeição.
Roteiro e direção
A representatividade é o carro-chefe da produção e cumpre muito bem sua missão de apresentar a cultura asiática para o ocidente sem cair em possíveis estereótipos, ainda que toda a essência das tradições chinesas seja realçadas para deixar bem evidente a temática, como, por exemplo, acontece com ‘Rio’, que mostra a visão estrangeira de um Brasil ideal. Além disso, o roteiro é perspicaz e encaixa as canções, algo que poderia se tornar facilmente maçante, dentro do contexto da história, justificando assim a decisão de inserir músicas em um filme que certamente teria funcionado melhor sem elas.
É curioso como a trama, as cores e até mesmo as canções mudam quando Fei Fei finalmente chega na lua. O neon ganha vida, as canções assumem um lado pop, hip-hop e até k-pop divertido (abandonando novamente a vibe Disney) e a narrativa ganha força e emoção, especialmente quando conhecemos a história de solidão e tristeza da tal deusa da lua, que se conecta muito bem na vida da própria protagonista. A condução de Glen Keane, clássico animador responsável por obras como ‘Pocahontas’, é brilhante e bastante sofisticada.
Conclusão
Uma animação criativa, doce e engenhosa, ‘A Caminho da Lua’ conquista pelo coração, diverte na medida certa e ainda apresenta a cultura asiática com bastante amor e sensibilidade para as novas gerações cujo modelo Disney não funciona mais. Não apenas um dos melhores filmes recentes da Netflix, como também uma fábula encantadora e vibrante sobre luto e autoconhecimento, que deve fazer rir e emocionar também o público adulto.