O constante debate sobre a necessidade de existir live-actions de animações clássicas da Disney ganha um novo e interessante patamar agora que o aguardado ‘Mulan’ já está entre nós. É importante ressaltar que a história da guerreira chinesa que entra para a guerra disfarçada de homem já era revolucionária muito antes da discussão sobre quebra de padrões das princesas da Disney, que hoje se tornou uma espécie de reparação histórica do estúdio, muito bem-vinda, diga-se de passagem. Porém, a animação, lançada nos cinemas mundiais em 1998, já carregava consigo a quebra de expectativa e a representatividade de uma cultura ainda pouco explorada no eixo ocidental. E nada mais cabível atualmente, com os movimentos sociais que a indústria está vivendo, do que resgatar essa trama tão singular e poderosa para um público jovem que já não vive mais em um mundo repleto de princesas estereotipadas e aprisionadas pelo machismo. ‘Mulan’, por si só, é uma necessidade e, diferente de todos os live-actions da Disney nos últimos anos, esse talvez seja o que faz mais sentido.
Uma releitura
É interessante (e triste ao mesmo tempo!) como a trama, desenvolvida mais de 20 anos atrás, ainda dialoga com o público de uma forma didática. Para que ‘Mulan’ ainda funcione e atinja seu objetivo de reflexão, o mundo precisa continuar carregado de estereótipos e desigualdade, tal como continua nos dias de hoje. Outro detalhe fundamental que vale ressaltar é que já vimos adaptações fieis de animações da Disney, como o recente ‘O Rei Leão’, que funciona com um perfeito remake, e algumas com liberdade criativa maior, como o ‘Dumbo’ do Tim Burton, mas ‘Mulan’ vai por outro caminho e entrega uma releitura da animação, com referências perceptíveis, mas que trilha sua própria trajetória nos cinemas, independente se essa história tem ou não uma versão animada. E veja bem, isso é criativamente bom e dá ao filme o que ‘O Rei Leão’ não tem: necessidade de existir. Mas, por outra vertente, é inevitável não comparar ambas as produções e, quando isso ocorre, é possível notar uma perda de carisma enorme, especialmente pela ausência de humor e falta de equilíbrio dos personagens do live-action em relação à doçura do desenho.
Enquanto esse filme segue firme e forte como uma das produções mais belas visualmente, não só da Disney, como também da história do cinema contemporâneo, ultrapassando até mesmo o colorido e vivo live-action de ‘Aladdin’, é notável o empenho do estúdio em criar uma obra de arte que se movimenta, que explora o esplendor da cultura chinesa com sua explosão de cores e cenários de tirar o fôlego, além de uma direção de arte e figurino em que cada mínimo detalhe é desenvolvido com atenção e cuidado. Essa magnificência é algo que merecia as telas do cinema, com som e imagem imersivos, e não as telinhas do Disney+, esse peso a Disney vai carregar para sempre como aprendizado.
Porém, enquanto há um trabalho absolutamente impecável da parte técnica, o roteiro por sua vez não entrega tanto empenho, muito por conta da pressa que a trama se desenrola e pela falta de emoção de seus personagens, já que a construção de narrativa foca muito mais na ação do que no drama humano, e olha que o filme não teve canções pois a diretora alegou que “ninguém canta quando está em guerra”, algo que evidencia ainda mais que o centro da história não é a descoberta da maturidade da protagonista e seu crescimento como mulher em uma época misógina, mas sim, o imediatismo da guerra e ação desenfreada para fisgar o espectador.
O elenco
Tanto a protagonista, vivida pela atriz Liu Yifei, quanto os personagens coadjuvantes, todos seguem sem desenvolvimento e sem espaço para que possamos imergir em suas relações. Obviamente há uma “jornada da heroína” que mostra, desde sua infância no vilarejo que mora com sua família tradicionalista, até o momento em que decide ir para a guerra no lugar de seu pai, vivido pelo ator Tzi Ma (A Despedida). Nesse contexto, ela descobre que seu “chi”, uma espécie de energia que todos nós temos, é mais forte que os demais e daí decide viver sua verdade e não mais se passar por um homem para conquistar seu espaço de direito. Essa premissa, vinda da animação, segue fiel, já que ‘Mulan’ é exatamente sobre essa desconstrução, porém, algumas decisões da produção não funcionam tanto assim, como a própria escolha de fazer um filme mais “sério” e “maduro”, que tem receio em colocar personagens alívios cômicos, como o dragão Mushu, que não está nesse filme apesar de ser fundamental na animação, mas que parece não temer colocar uma vilã (que até possui um desenvolvimento bom e um twist interessante) que tem a habilidade de se transformar em animais e possuir pessoas.
No lugar do carismático dragão, há uma fênix (belíssima visualmente), que parece só existir na mente da protagonista e que, ainda que seja uma metáfora para ascensão de sua jornada como guerreira, não serve para absolutamente nada. Poderia ser descartada que não faria falta na trama. Ou seja, Mushu era sim necessário (ou pelo menos algo que se aproximasse desse personagem) e o humor que agregaria sem dúvida tornaria a história mais encantadora. Essa ausência de equilíbrio pesa negativamente. As poucas piadinhas bobinhas que tem são completamente sem ânimo. Já as canções, apesar de ter referências à elas em algumas cenas, certamente daria ao filme um tom diferente do que ele deseja alcançar e, dessa forma, a decisão de retirá-las foi condizente.
A direção
Por outro lado, a ação do filme é puro espetáculo. As lutas coreografadas são divertidas e representam muito da cultura oriental, até mesmo o uso proposital de cordas para içar os atores no lugar de efeitos especiais. A diretora Niki Caro (O Zoológico de Varsóvia) faz um trabalho sensacional com a câmera durante essas cenas e o resultado é pura sofisticação, reflexo da grandiosidade do filme, porém, o ritmo desenfreado atrapalha muito, como já citado, no desenvolvimento dos personagens e na relação de perigo da trama. Há uma pressa estranha na narrativa, com uma montagem totalmente picotada, que faz momentos importantes, como o próprio clímax, passar tão acelerado e se resolver tão preguiçosamente, que perde grande parte de seu verdadeiro impacto.
Fora isso, algumas sequências de ação são tão mal montadas e frenéticas, que o espectador fica tonto de tanta pirueta somada à slow-motion, utilizado de forma excessiva para provocar encantamento na plateia. Falta sutiliza e sensibilidade para contrapor com a grandiosidade dos cenários. Se pegarmos ‘Pantera Negra’, por exemplo, outro filme que se empenha em desenvolver cenários monumentais e uma direção de arte imponente, mas que sabe, acima de tudo, trabalhar seus personagens de forma que, apesar de toda imensidão da ambientação, são eles o destaque e conquistam pelo coração. Algo que, de longe, não acontece nesse live-action de ‘Mulan’.
Conclusão
De forma madura, ‘Mulan’ ressignifica o sentido de fazer um remake das animações da Disney e se mostra extremamente atual e necessário. Uma completa explosão de representatividade, com cenários monumentais que são puro deleite visual. Porém, enquanto a ação desenfreada é feita para as telas do cinema, o roteiro peca em não conseguir desenvolver seus personagens e a direção apressada atrapalha a absorção de emoção. Ainda assim, sua grandiosidade técnica deve eclipsar seus erros e tornar esse o melhor live-action da Disney até então, mas será que isso significa que o filme é excelente ou que os outros erraram mais? De uma forma ou de outra, ‘Mulan’ não desonra a animação clássica, além de ser um espetáculo feito para os cinemas e, como tal, deve encantar todos os públicos e, de quebra, ainda reforçar para os mais jovens que uma mulher pode ser o que ela quiser ser.