O consumo desenfreado e sem responsabilidade da internet tem rendido ótimas tramas, que buscam provocar reflexão sobre o lado negativo e perigoso do universo online. A tecnologia, que tanto auxilia nossas vidas, também pode provocar desinformação e caos, especialmente quando nascem as fakes news, ferramentas tão danosas que podem, até mesmo, eleger presidentes. Mas é sobre outro aspecto do mundo digital que ‘Rede de Ódio’ (Hejter) – novo filme polonês original da Netflix – debate. O nascimento de um troll (como são conhecidas as pessoas que vivem apenas para causar online e distribuir ódio gratuito, especialmente contra as minorias) e como um jovem, aparentemente normal, pode se tornar um verdadeiro agente do mal se tiver as oportunidades certas.
O roteiro é minuciosamente pensado para mostrar essa tal “origem” do vilão, que também é o protagonista da história. Assim como vemos em ‘Coringa’, sua jornada vai desde pequenos erros até o mais puro nascimento de uma personalidade perversa e oportunista, que usa a internet (e o trabalho de publicidade) para alimentar o ambiente tóxico que vive. Com isso, sua trama é extremamente atual e dialoga com questões políticas inteligentes, que estão acontecendo no mundo nesse exato momento e fazem parte de um sistema ainda maior e mais manipulador, que oprime cidadãos e elege líderes mundiais, ou seja, tudo gira em torno de uso da internet para fazer o incorreto e o ilegal. Pelo lado da contemporaneidade, o longa é impecável no debate que traz à tona e como guia essas questões políticas durante a construção da decadência social do protagonista, vivido com perfeição pelo jovem Maciej Musialowski, que agrega ao personagem um olhar maligno, cínico e doce ao mesmo tempo.
Porém, como narrativa, a história não é nada sútil, mas lenta e arrastada, ainda que possa prender a atenção boa parte do tempo, cansa pela falta de ação e pelo longo desenvolvimento dos personagens secundários. Ainda assim, há uma grande perspicácia do diretor Jan Komasa (Varsóvia 44) em chocar o espectador, especialmente da metade para o final do filme, quando a trama se intensifica e culmina em um desfecho interessante e assombroso. Além disso, é divertido a subversão do longa, que coloca um antagonista para ser também o olhar que guia a história e que nos faz enxergar através de seu ponto de vista triste e pessimista sobre a vida e as pessoas à sua volta.
Tomasz é um jovem branco, heteronormativo, que tem tudo à sua disposição, apesar de não ter o dinheiro que deseja e ser sustentado por terceiros, mas que se deixa levar pela ambição e pela falta de carinho do contexto social em que vive, replicando assim, seu ódio interno na sociedade e se tornando o que chamamos de incel. Com isso, conhecemos seus defeitos e o que o levou a ser como é, um cuidado importante que o roteiro toma na construção do protagonista.
O elenco, de forma geral, está impecável, bem como a parte técnica, a direção de fotografia fria e cinza e a trilha de suspense constante e envolvente, que segura o espectador na trama que está sendo construída. Outro fato que chama a atenção é o uso de recursos visuais para representar as redes sociais e interações, muito utilizados em comédias românticas, por exemplo, mas que surpreendentemente funcionam nesse contexto mais sombrio e pesado, a propósito, o clima é obscuro do começo ao fim e isso pode despertar alguns gatilhos sobre depressão e até mesmo violência, já que tem cenas realmente pesadas de assassinato que devem ser assistidas com cautela por quem está mais sensível. Outro ponto negativo se deve à imensa quantidade de assuntos contemporâneos que o roteiro aborda ao mesmo tempo, algo que pode confundir a cabeça do espectador que tenta focar no protagonista e nem tanto na trama que o cerca.
Através disso, ‘Rede de Ódio’ tem uma crítica social poderosa, que mostra o nascimento de um hater e como o uso sombrio da internet pode provocar dor, caos e, até mesmo, eleger líderes mundiais à base de fake news. Um filme contemporâneo bem essencial para compreender o outro lado do mundo digital, mas que tem problemas de ritmo e deve cansar o espectador que busca mais ação. Ainda assim, é uma representação honesta, obscura e reflexiva sobre a nossa sociedade atual, sobre a força da internet e, até mesmo, sobre a tão discutida “Era do cancelamento digital”. Nesse, a Netflix acertou em cheio.