O cinema sul-coreano tem obras que são um verdadeiro espetáculo, que misturam estilo, violência e ação elaborada para entregar uma trama completamente envolvente desde o seu primeiro minuto. E o longa ‘Tempo de Caça’ (Time to Hunt), original da Netflix, cria uma atmosfera distópica que se insere nesse quesito com maestria e serve para exemplificar a qualidade do cinema autoral mesclado com blockbuster que vem da Ásia. Desde sua primeira cena, o roteiro e a ambientação em uma Coréia do Sul futurista e sombria, já mostra que esse não será apenas mais um filme genérico de ação, mas sim, o começo promissor de uma franquia aos moldes de ‘John Wick’, quem sabe.
Os cenários cyberpunk inserem a história em um contexto realista, de um país em crise após perder a valorização de sua própria moeda e dominado pelo crime e ausência de lei. Nessa premissa, somos apresentados à um grupo de jovens que, após um deles sair da prisão, bolam um plano mirabolante para assaltar um cassino, roubar uma fortuna de dólares (a moeda mais valorizada na época) e ter, com isso, uma qualidade de vida melhor. Porém, como podemos imaginar, o plano até dá certo, mas eles se envolvem com pessoas perigosas que não estavam esperando. Daí por diante, o roteiro segue o modelo “gato e rato” e cria uma fuga eletrizante dos jovens para sobreviver, enquanto são caçados por um assassino profissional imparável. Outra grande qualidade do cinema sul-coreano é exatamente brincar com diversos gêneros dentro de um único filme, como ‘Parasita’ faz tão bem. Aqui, há ação, suspense policial, terror, drama e subversão das expectativas por não ser um filme distópico de ficção científica, como tradicionalmente acontece.
É interessante notar como a direção pega o pouco que possui e transforma em algo realmente grandioso e impressionante. O diretor Yoon Sung-hyun utiliza planos-gerais e os interessantes “planos-holandeses” para dar ainda mais estilo à trama e as cenas de ação. Sua condução deixa a cidade assustadora e grandiosa. De longe, uma das maiores qualidade da produção está na forma como Sung-hyun transforma o tradicional em algo visualmente espetacular, até mesmo as cenas de diálogo são muito bem realizadas, quebram eixos e a câmera parece estar flutuando por entre os cenários e personagens.
Além disso, a trilha densa faz o suspense ser imprevisível e intenso, há momentos, inclusive, que assume uma vibe de terror tradicional, de slasher, que deixa o espectador na ponta da cadeira, especialmente pela presença de um vilão impiedoso e psicopata, que realmente passa sensação de perigo quando está presente. Isso e a direção de fotografia escura, sombria e com bastante uso de neon, dão à produção um gás à mais e um visual ímpar, ainda que seja inspirado em outras distopias do mesmo gênero.
É claro que a violência gráfica está presente com força e funciona perfeitamente dentro de sua proposta. As cenas de ação são bem realizadas e muitas até surpreendem o espectador. Quando achamos que o filme está indo para um lado, ele caminha para outro. Tem cenas de suspense que esperamos que algo aconteça, e não acontece. Detalhes que mostram que a direção está plenamente ciente do tipo de obra que está realizando. Porém, claro, há alguns deslizes, como a falta de humor e algumas soluções mirabolantes para momentos sem saída do roteiro, o famoso “deus ex machina”.
O mais visível é quando um dos protagonistas está prestes a morrer e aparece algo, do nada, para salvar sua vida e por aí vai. Detalhes que são difíceis de engolir, mas que não devem influenciar a imersão do espectador, já que a construção do suspense é envolvente ao extremo e esses momentos passam despercebidos. O elenco, por sua vez, também está deliciosamente impecável, em especial, o trio principal, formado por Lee Je-hoon, Ahn Jae Hong e Choi Woo-shik (de Parasita). Jo Sung-ha, apesar de poucas palavras, passa toda a maldade e intensidade do vilão com sua expressão corporal.
Dessa forma, ‘Tempo de Caça’ é a experiência de assistir ‘John Wick’ do ponto de vista das vítimas caçadas. O longa sul-coreano é majestoso na construção de sua atmosfera distópica e o roteiro aproveita a liberdade para brincar com diversos gêneros, já que a direção dá à obra um estilo particular que é prazeroso de se assistir. Ainda que não saiba bem trabalhar o humor e tenha algumas previsibilidades, trata-se de uma produção que tem potencial de desenvolver uma franquia eletrizante e que conquista pelas cenas de ação de tirar o fôlego. De longe, um dos melhores filmes da Netflix em muito tempo.