O maior problema em ‘O Vendedor de Sonhos’, drama nacional que entrou na Netflix, é o apego absurdo à narrativa literária, que sufoca a história e não permite que o roteiro haja como um roteiro convencional, já que segue o modelo prescrito do livro cuja trama foi adaptada. Na realidade, esta é a adaptação do primeiro volume de uma trilogia escrita pelo autor Augusto Cury, que acompanha um homem de negócios que, após fracassos e perdas na vida, começa a viver como uma espécie de coaching motivacional, na tentativa de ajudar pessoas aleatórias que estejam passando por dificuldades. A premissa tem tudo que um bom drama necessita: frases de efeito, personagens enigmáticos, momentos emotivos e pensamentos otimistas, porém, a sensação é de estarmos acompanhando capítulos de um livro e não um filme em si, ou seja, a história, claramente, não funciona como deveria fora das páginas.
Ou talvez até pudesse funcionar se as escolhas narrativas e a estrutura tivessem sido diferentes. A trama, que segue duas linhas temporais, começa com Júlio César (Dan Stulbach), um psicólogo decepcionado com a vida em geral, que tenta o suicídio, mas é impedido de cometer o ato final por intermédio de um mendigo, o tal “Mestre” (César Troncoso), logo, ambos se tornam amigos e começam a enxergar a vida de forma diferente. Se por um lado é um filme brasileiro que foge do habitual, já que concentra sua trama em poucos personagens e algumas situações, por outro, falta farinha nesse arroz com feijão. Tudo é básico demais. As sequências são claramente divididas em “momentos para o personagem mostrar sua bondade” e, com isso, o coloca em situações extremante forçadas e não-naturais, como dentro de um velório aleatório ou ajudando um menino de rua ou até mesmo reunindo um grupo de empresários poderosos em um cemitério, sem a menor explicação lógica. Uma atrás da outra.
Além disso, o tal Mestre Vendedor de Sonhos nada mais é do que um homem que distribui empatia e a devoção da história por seus atos o coloca praticamente em uma releitura de Jesus Cristo moderno. A ausência de defeitos (além de mostrar que ele era um pai ausente) e o excesso de frases enigmáticas e reflexivas que utiliza para se comunicar é enjoativo e não soa nada natural. Ainda que a atuação de César Troncoso seja boa e tenha, de fato, carisma, tudo na trama nos força a gostar do personagem por seus atos bons e ele se torna uma espécie de divindade que, por incrível que possa parecer, não tem a menor força de conquista, exatamente por soar falso e artificial demais. É o endeusamento de um homem comum, fazendo o mínimo, que todos deveriam fazer. Quando o protagonista, que dá título ao filme, é também seu ponto mais fraco, temos mais um sinal de uma adaptação precária.
Já Dan Stulbach (ou o Tom Hanks brasileiro) está bem no papel, ainda que engessado e preso demais ao texto. Começa emotivo, passa por algumas modificações e muda seu ponto de vista, culminando em um desfecho que fecha o ciclo exatamente onde tudo começou. O ator consegue performar todas essas nuances e, de todos, é o único personagem que tem uma evolução, uma jornada. O mesmo já não se pode dizer da direção vaga e problemática de Jayme Monjardim (O Tempo e o Vento), apegada demais ao efeito que tais frases podem provocar no espectador, se esquecendo que precisa contar uma história condizente e que dialogue com a linguagem cinematográfica. O texto ensaiado é perceptível nas atuações, o que também prova que nem mesmo os atores ele soube dirigir com atenção.
E é através desse uso artificial e excessivo de frases motivacionais, reflexões e situações forçadas, que ‘O Vendedor de Sonhos’ desperdiça sua premissa interessante e sensível. O roteiro raso, se apega demais à narrativa literária e se esquece de trabalhar a linguagem cinematográfica. Uma adaptação muito precária e cafona de uma história realmente boa. Há a sensibilidade que a proposta pede e há também boas atuações, ainda que engessadas, o que falta mesmo é uma direção menos vaga e mais devotada em fazer a história best-seller também funcionar em outras mídias. Infelizmente, não passa de uma fantasia sobre um Brasil inexistente e, pelo menos, mostra o que aconteceria se Jesus Cristo fosse coaching motivacional.