Crítica | Devorar – É preciso ter estômago forte para esse suspense visceral

O cinema, talvez ainda mais forte que as demais artes, consegue provocar sensações indescritíveis em nossa mente e em nosso corpo. Sentimos enjoo, repulsa, medo, agonia e aflição em determinadas obras e isso é o efeito da manipulação do espectador que Alfred Hitchcock tanto acreditava. Um filme imersivo e intrigante nos faz apagar o mundo ao redor e mergulhar em sua premissa, seja ela qual for, especialmente, se envolver uma personagem com um transtorno bizarro que a faz se viciar em se alimentar de objetos perigosos. Isso mesmo, ela digere materiais variados e, quando sente prazer na degustação, nós somos levados à ponta da cadeira de tanta tensão criada pela direção sagaz.

Mas não é apenas de aflição que ‘Devorar’ (Swallow) nos fisga, já que o design de produção é impecável, assim como a perfeita direção de fotografia, que realça as cores vermelhas para intensificar a sensação de perigo constante. Esse é um daqueles filmes em que cada plano é elaborado com muito estilo, cada enquadramento é pensado pela direção para provocar algum tipo de sensação, seja ela perceptível ou não. E essa ambição contrasta com uma trama simplista, direta e sem grandes reviravoltas, que consiste apenas em mostrar uma mulher adulta, grávida, que sente prazer em comer objetos que podem pôr um fim em sua vida. Há uma estranheza macabra em volta da protagonista e sua personalidade passiva-agressiva, que faz parte da maior qualidade do filme, além de provocar repulsa, claro: a atuação fantasmagórica de Haley Bennett (A Garota no Trem).

A atriz está extraordinária no papel e grande parte dessa sensação intensa se vem pela sua atuação profundamente encantadora e devotada à personagem. Mesmo nos mínimos detalhes, sua atuação se torna o centro da narrativa e, sozinha, carrega o filme nas costas, especialmente por sua personagem ser o único elemento que evolui com o passar da história. Conforme se sente mais e mais frustrada com sua vida infeliz e a família tóxica de seu marido, ela começa a comer objetos ainda mais perigosos e a sensação de perigo aumenta, porém, infelizmente, há alguns deslizes do roteiro, que faz o clímax ser antes do previsto, com isso, após todos descobrirem seu segredo obscuro, a história perde força e começa a decair. Ainda que seja interessante descobrir mais sobre o passado da protagonista, o principal elemento, que mantinha o espectador na mão da direção, se perde.

Ainda que a proposta seja até mesmo descomplicada, a trama mergulha em assuntos densos e controversos para justificar as atitudes da personagem. Com isso, há debates sobre perdão, doenças mentais, machismo, abuso sexual e sobre relacionamentos abusivos. Esses assuntos moldam os personagens e as subtramas e, curiosamente, vemos a história pelos olhos da protagonista que, apesar de vítima de situações péssimas da infância, claramente possui problemas irreparáveis e atitudes questionáveis. Ver o mundo através de seus olhos provoca sim um sentimento de piedade, mas também provoca raiva, principalmente pela forma como lida com o mundo e os problemas ao seu redor.

Como um belo banquete de iguarias, há diversos pratos sendo servidos pela direção de Carlo Mirabella-Davis. As diversas camadas, tanto da protagonista quanto da trama, são magnificas para a construção da atmosfera de suspense, que cresce intensamente, pelo menos até metade do filme. Sua proposta é singular e focada em mostrar a rotina de uma personagem problemática, assim como os traumas que a levou a comer terra, por exemplo. Quando ela se vê hipnotizada pelo objeto, antes de engolir, a direção cria um clima de desejo, de prazer, que culmina no orgasmo que é sentir o objeto em sua boca. Essa artimanha é belíssima, doce e intrigante de ser assistida.  

Estranhamente sexy e visceral, ‘Devorar’ é um daqueles filmes que, uma vez assistido, você não esquece nunca mais, especialmente pela aflição e prazer que a direção coloca na sensação de perigo e pela performance faminta, digna de Oscar, de Haley Bennett. Uma obra sensorial e intrigante, que desenvolve uma premissa singular e estilosa, sobre uma jovem que vê prazer em digerir objetos perigosos. É preciso ter estômago forte, mas a jornada, ainda que perca a força no desfecho, é deliciosa.

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