O roteiro, a estrutura óssea da trama de ‘Mentiras Perigosas’ (Dangerous Lies), novo suspense da Netflix, parece ter sido escrito para ser uma aposta na loteria, de tanto que abusa das coincidências e se constrói em torno de reviravoltas adicionadas em cima da hora, apenas para movimentar o tédio. A história é tão manipulável pelos seus realizadores, que atravessa a veracidade e testa a inteligência do espectador. É importante começar com essa observação, pois é exatamente esse roteiro megalomaníaco e insatisfeito com a simplicidade, que põe o suspense a perder.
A trama, que mostra um casal de classe média sofrendo perrengues pela falta de dinheiro e oportunidades de trabalho, começa intrigante e tem até uma boa construção do suspense. Não sabemos o background dos personagens e esse mistério põe uma pulga atrás da orelha sobre o desenrolar da história, quando a jovem, vivida pela atriz Camila Mendes (Riverdale), começa a trabalhar como cuidadora de um senhor idoso, que vive sozinho. Se, de início, imaginamos que ela será corrompida pela ganância e se aproveitará do pobre homem, logo somos surpreendidos com o fato de que eles se dão bem e ela nunca pensaria tal ato. Porém, é aí que o trem começa a descarrilhar. A protagonista é profundamente fraca, para uma trama que exige alguém com nuances. Sua personalidade incorruptível é exagerada, forçada e desanimada. E daí por diante, a trama joga fora seu ritmo instigante e mergulha em uma dilatação do tempo que é o mais puro tédio.
Todo o segundo ato, que passa lentamente, desenvolve uma enxurrada de coincidências bizarras, difíceis de engolir, e clichês. A sensação é de que estamos dando voltas e mais voltas em torno do óbvio, que aparentemente nunca é enxergado pela protagonista e sua pose de boa moça que o roteiro decide não mexer. As cenas e os diálogos começam a se repetir e as resoluções para os mistérios são irritantes de tão superficiais e mal desenvolvidas. Até mesmo a inicial direção estilosa de Michael Scott (Sansão) é completamente abandonada quando a história centraliza na casa. Essa tempestade de tédio e as reviravoltas forçadas se tornam tão presentes, que em determinado momento, parece que qualquer coisa pode ser possível dentro do roteiro, já que o propósito mesmo é tentar surpreender o espectador com plot twists no melhor estilo Scooby-Doo.
Dentro desse desenvolvimento cansativo, bons elementos, como as questões raciais e o prejulgamento proposto sobre o personagem do noivo, vivido pelo ator Jessie T. Usher (The Boys), são eclipsados pela falta de tato do diretor ao mesclar as diferentes narrativas. Aliás, esse é o único personagem que mostra sinais de desenvolvimento, já que os demais são apenas construídos em torno de estereótipos, como a investigadora do caso, que só aparece para soltar frases óbvias, já que o roteiro acredita que seus questionamentos são uma forma de fazer o público compreender a presepada que está acontecendo. Camila Mendes tem uma performance insossa e apagada, diferente da madura e determinada que tem em ‘Riverdale’, um reflexo claro da falta de profundidade na personalidade da protagonista e, sem dúvida, do despreparo da atriz em entregar emoção, ainda que seja limitada.
Dessa forma, o único perigo real de ‘Mentiras Perigosas’ é de o espectador pegar no sono com tanta presepada irreal e coincidências absurdas. Uma trama que desperdiça sua boa premissa tão facilmente quanto transforma Camila Mendes em uma protagonista sem ânimo. A decepção só não é maior, pois o suspense consegue intrigar inicialmente, porém, é mais uma obra genérica, cansativa e desajustada da Netflix. E essa, ainda por cima, acredita estar manipulando direitinho o espectador, que está sempre um passo à frente de suas reviravoltas bregas e fajutas.