É profundamente interessante como documentários nos transportam para mundos que muitas vezes não enxergamos. Como o gênero, em si, tem um poder de recortar a realidade e ampliá-la para que possa se tornar um objeto de apreciação e estudo para o resto do mundo. Realidades como a de um menino sírio morto numa praia da Turquia, em 2015, que se tornou símbolo da crise migratória que já matou milhares de pessoas do Oriente Médio e da África, que tentam chegar à Europa para escapar de guerras, de perseguições e da pobreza.
E é essa apreciação que dita o tom melancólico de ‘Aeroporto Central’, documentário de Karim Aïnouz, diretor do excelente ‘A Vida Invisível’, que teve seu lançamento direcionado para as plataformas digitais por conta do atual cenário pandêmico que nos encontramos. Uma obra inteligente, profundamente essencial e que não pode passar despercebida, especialmente por tratar um tema tão importante quanto a crise humanitária com os refugiados da guerra na Síria.
A trama se desenvolve no extinto Aeroporto de Tempelhof, em Berlim, importante local de chegadas e partidas de refugiados de guerra até 2019. Com enormes hangares, o lugar servia de abrigo emergencial para todos aqueles que buscavam asilo no país e que haviam passado por uma longa e dolorosa jornada de sobrevivência. Com seu ambiente estabelecido, o diretor acompanha o dia-a-dia do jovem Ibrahim Al Hussein, figura central da história, pelos anos de 2015 e 2016, durante o tempo que permanece no aeroporto até poder, de fato, seguir com sua vida. Dessa proposta íntima, os longos planos contemplativos mostram a agonia e ansiedade do jovem e a rotina triste de estar longe da família.
O olhar sensível de Karim Aïnouz mostra sua versatilidade, mesmo que tenha sido realizado antes de ‘A Vida Invisível’, o diretor consegue partir de uma adaptação sobre duas irmãs que viveram separadas, para um documentário sobre refugiados da Síria, sem perder a delicadeza e o tom melancólico, que permeia ambas as histórias. No documentário em questão, seu olhar afetivo dá espaço para os personagens se desenvolveram, já que a câmera parece estar sempre distante e as convencionais entrevistas são convertidas em narração em off, pelo o próprio Ibrahim Al Hussein que, aliás, passa sua angustia através dos olhares aflitos, emotivos e carregados de dor, sem contar que se prova uma figura poderosa para guiar a história, principalmente por ser jovem e estar sozinho, longe de tudo que estava acostumado a ter. Seu trabalho é impecável, ainda que seja sua realidade crua e fria, ele sabe se expressar com vigor.
A mensagem que existe por debaixo do que a câmera mostra também é poderosíssima, tanto pela quebra de preconceitos, quanto pela urgência do assunto no mundo, afinal, muitos países ainda se recusam a receber imigrantes e refugiados de outros que estão em confronto, temendo que, junto com as pessoas de bem, venham também terroristas. Dessa forma, o pequeno recorte do tempo desse documentário serve para mostrar a necessidade de que essas pessoas, que deixam tudo para trás para sobreviver, tem de serem enxergadas, ajudadas e que suas vozes possam ser ouvidas e ecoadas, como Aïnouz faz. Ainda assim, por colocar o foco apenas no aeroporto e os dilemas do lugar, a produção perde uma boa oportunidade de abranger o assunto para outras vertentes e explorar, mais a fundo, o impacto dessa crise migratória para os demais países (incluindo o Brasil) e as divergências políticas. Além, claro, do ritmo lento e apreciativo que o diretor decide utilizar, algo que funciona, mas pode cansar alguns espectadores desavisados.
Dessa forma, ‘Aeroporto Central’ nos convida para olhar o mundo que existe e se destrói além de nós, um poderoso e informativo documentário sobre um assunto que precisa ser tratado com urgência. O olhar compassivo do diretor Karim Aïnouz consegue dar voz a figuras que poderiam ter morrido em praias, mas que estão lutando todos os minutos, não apenas para viver, mas também para sobreviver, após ter sua vida devastada pelo horror da guerra e da fome. Contemplativo, melancólico, humano e extremamente essencial, que deve tocar os corações e perpetuar, principalmente nessa época de pandemia, que precisamos olhar para além de nós mesmos.