Crítica | Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica é o filme mais relevante da Pixar desde WALL-E

É difícil não se encantar com o carinho e cuidado especial que a Pixar tem em desenvolver suas animações. Desde o primeiro ‘Toy Story’ até hoje, o estúdio vivenciou uma absurda evolução técnica, mas manteve sua essência ao criar histórias peculiares, que agradam tanto o público alvo como também os adultos. Há diversão de sobra e muita energia nas tramas, porém, por debaixo de todas as cores vivas em 3D, o esqueleto dessas narrativas são importantes estudos psicológicos e tratam, com muita maestria, sentimentos como amor, amizade, solidão e a importância da família. Mas isso já sabemos. O que é novidade, talvez, seja como o estúdio consegue carregar sua alma por tantos anos sem cair na repetição ou mesmo na autorreferência com frequência. Quer dizer, após uma leve, porém, significativa queda na criatividade com uma enxurrada de sequências que não se saíram tão bem assim, como ‘Os Incríveis 2’, por exemplo, a formiga da originalidade parece ter picado novamente a equipe criativa, afinal, ‘Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica’ (Onward) é um delicioso fluxo de imaginação que não acontecia desde ‘DivertidaMente’.

Porém, ainda que engenhosa, a animação mostra sim um desgaste do estúdio na busca por histórias perfeitas, ou mesmo na busca para manter o nível de excelência, dessa forma, visivelmente se apega ao sucesso estrondoso da franquia ‘Como Treinar o Seu Dragão’ para compreender o consumo das crianças atualmente e direcionar para esse caminho, além de, claro, também fazer referências à ‘Harry Potter’ e ‘O Senhor dos Anéis’. Com um pé no que já deu certo e outro na singularidade, a trama apresenta um mundo comum, sem graça e realista, onde uma vez a magia dominava, porém, conforme o tempo passa, os seres “mágicos” foram gradativamente se afastando da fantasia para viver em um lugar onde a tecnologia dita as regras. Nesse contexto, criaturas majestosas, como unicórnios, são comuns, ordinários e algo próximo de “ratos” que se alimentam de lixo e vivem perambulando pela cidade. Estabelecida a ambientação no melhor estilo “conto de fadas sem fadas”, a jornada é realmente engraçada e, como subtexto, explora o distanciamento do ser humano de sua origem.

Mesmo que, de forma singela, há sim autorreferências a diversos filmes e personagens já existentes no estúdio, até mesmo a trilha sonora, com tons épicos e notas sutis, lembra a canção-tema de ‘Up: Altas Aventuras’, feita por Michael Giacchino. O roteiro desenvolve uma aventura relativamente simples, de dois irmãos elfos que precisam seguir os comandos deixados pelo pai já falecido para poder trazê-lo de volta por um dia e, dessa forma, se reconectar com a magia que uma vez fez parte da rotina do mundo. Com a estrutura básica de um road movie, a história segue um bom ritmo e sabe dosar os momentos emotivos, elemento clássico nas animações do estúdio. Porém, dessa vez, o tão singular humor sofisticado é colocado de lado para dar lugar a mais cenas de ação e desenvolvimento de personagens e, com isso, algumas piadas definitivamente não decolam. Nada que possa prejudicar a imersão ou gerar desconforto, apenas segue por um caminho menos elaborado que ‘Toy Story 3’, por exemplo.

A direção do veterano da casa, Dan Scanlon é dinâmica, porém, um pouco apressada, talvez por já ter comandado dois filmes “fracos” no estúdio (‘Carros’ e ‘Universidade Monstros’), tenta se redimir a todo custo e acerta em partes, sendo o melhor dos acertos, na estrutura narrativa e na construção dos protagonistas, dublados (na versão americana) por Tom Holland (Ian) e Chris Pratt (Barley), aliás, a personagem Manticora (com a voz de Octavia Spencer) rouba a cena e merece um spin-off só de suas aventuras antes da trama desse filme. Ademais, a qualidade técnica da animação em 3D, mais uma vez, é de cair o queixo com tamanho realismo e atenção aos detalhes, como poeira, fios de cabelo e sombras. As expressões dos rostos e os cenários estão cada vez mais sofisticados, por vezes, parece estar assistindo um longa live-action. Esse apreço é, sem dúvida, valorizado pelas cores reluzentes e as locações deslumbrantes do mundo mágico desenvolvido no filme.

Como absolutamente nenhum roteiro da Pixar é superficial, as camadas mais profundas, enxergadas pela ótica dos adultos, guardam mensagens ousadas e importantes, sendo a principal delas, a presença de uma personagem assumidamente lésbica. A primeira abertamente LGBTQ+ da história do estúdio que, apesar de sua única cena conter alguns estereótipos, ela verbaliza ter um relacionamento com outra mulher. Um pequeno passo de representatividade que faz a diferença em tempos de disseminação de preconceito. Além disso, a história está repleta de boas intenções e mensagens significativas sobre luto, paternidade e perseverança, sendo a tal magia uma metáfora sobre acreditar em si mesmo para enxergar um mundo diversificado, onde todos os povos, independes da raça, crença ou orientação sexual, podem conviver em harmonia e respeito. Nenhuma criança nasce preconceituosa e obras como esta as ensinam a valorizar as diferenças.

‘Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica’ é uma belíssima e divertida explosão de diversidade como nunca antes feito na Pixar. Não apenas sua essência é resgatada, como também acerta novamente em apresentar uma história que agrada a todos os públicos, enquanto planta sementinhas sobre amor, luto e amizade em nossas cabeças. Muito mais que um filme para família e uma animação com o que há de melhor na sofisticação técnica, é a Pixar se reinventando, descendo do pedestal e bebendo da fonte de outras produções para entregar o seu filme mais contemporâneo e relevante desde ‘WALL·E’.

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