O debate gerado pelo movimento #MeToo sem dúvida ampliou os horizontes para que obras do cinema e da TV pudessem retratar temas relacionados ao assédio moral e sexual em suas tramas, porém, se já é preciso ter cuidado e delicadeza quando o projeto decide mostrar o lado do predador, imagina então quando a história é sobre uma mulher que, levada por seus desejos mais intensos, se apaixona por um assediador condenado. Pois bem, é sobre isso que o drama ‘Instinto’ (Instinct), escolhido da Holanda para representar o país no Oscar 2020, se trata e, por conta disso, que sua interpretação pode ser extremamente de mau gosto, ainda mais por ser um caso fantástico do que vou chamar de “filme-gatilho”.
Na trama, Nicoline, uma psicóloga experiente que trabalha em uma instituição penal, começa um caso com um estuprador em série, que parece estar pronto para retornar à sociedade após pagar por seus crimes, descritos como violentos e sádicos. Essa premissa e sua proposta abrem duas vertentes para debate: se por um lado é interessante se afastar do caso de assédio em si e mostrar o íntimo do desejo humano e até onde a atração sexual pode corromper uma pessoa, por outro, o tema delicado e abordagem do roteiro, direto e sensual, distorce a mensagem que poderia ter sido retratada com muito mais cuidado e atenção pelo olhar da diretora Halina Reijn (A Espiã).
Inclusive, outro fato curioso: a protagonista é uma mulher livre, sim, porém, hiper sexualizada pela direção, algo que poderia facilmente se relacionar com um homem no comando do projeto. Acontece que Reijn opta por remover toda e qualquer hipocrisia e mostrar uma mulher que possui desejos e que se deixa levar pela lábia de um homem diferente de todos que ela já se interessou. Certo ou não, necessário ou não, ao menos é um ponto de vista diferente após tantas produções “preto no branco”, em que a mulher é apenas a vítima indefesa e o homem o monstro. Ainda que a grande maioria dos casos relatados de assédio sejam dessa forma, há uma parcela de histórias diferentes que também precisam ser contadas.
Nesse contexto, é estranho que a escolha para protagonizar a trama seja a atriz Carice van Houten, que foi exibida sexualmente além do convencional pelos realizadores de ‘Game of Thrones’. Ainda que seja uma atriz ótima e conduza a trama com olhares intensos, não deixa de ser um desconforto vê-la novamente em um papel cujo sexo é sua defesa. Além disso, Marwan Kenzari (que vive o vilão Jafar no live-action de ‘Aladdin’), também entrega uma atuação poderosa, mesmo que contida em si.
A dupla não possui química nenhuma e esse talvez seja o maio acerto da trama e um lapso da mensagem que a diretora deseja passar apesar da polêmica: não há nenhum tipo de relação amorosa entre os dois e sua união é única e exclusivamente baseada em sexo. Porém, há sim uma leve romantização do estupro. Mesmo sendo difícil de digerir, é compreensivo que a trama siga por esse caminho, mesmo que busque mostrar a manipulação que a personagem está sofrendo. Para isso, a fotografia escura e os planos fechados auxiliam esse ambiente distorcido da história.
Dessa forma, é difícil digerir ‘Instinto’ e sua trama pode facilmente cair em interpretações erradas, porém, não deixa de ser um ponto de vista diferente sobre o assunto e, com isso, se torna um ótimo estudo sobre uma parcela de casos em que há desejo sexual mútuo envolvido na relação entre vítima e predador. A falta de cuidado com algumas sequências mais intensas, que facilmente se tornam gatilho, e o desequilíbrio da direção pode afetar o resultado, ainda assim, é intrigante e até mesmo interessante como nos envolvemos e entretemos com algo tão controverso. Apenas por isso, o filme não é um total desserviço.