Bong Joon-ho é um mago cinematográfico que consegue transformar histórias relativamente cotidianas, em obras que beiram a perfeição, tanto técnica quanto narrativa. ‘O Hospedeiro’ e ‘Okja’, por exemplo, são filmes cujos roteiros possuem tantas camadas, que causam a sensação de estamos assistindo muitos em um. E essa qualidade talvez tenha se amplificado em ‘Parasita’ (Gisaengchung), sua obra mais madura e incômoda até agora. Há muito mais abaixo da superfície de sua premissa e o espectador embarca na montanha-russa de uma jornada inesquecível pelos caminhos tortuosos do roteiro, que mescla diversos gêneros para fortalecer a gama de sensações e sentimentos ao longo da trajetória.
O diretor tem uma fixação por filmes de monstros e em ‘Parasita’ não é diferente. É um filme de monstro, porém, utiliza a crítica social afiada para contextualizar os “monstros” reais da sociedade. Por conta disso, o roteiro é tão inteligente e astuto no desenvolvimento de seus personagens, sem apelar para o “bonzinho” e o “vilão”, explora todos os lados do ser humano e sua capacidade de sobreviver perante o caos. A obra é um perfeito estudo sobre ética e nós, espectadores, somos as cobaias, já que a todo tempo questionamos se a situação precária dos personagens de uma família justifica seus atos, se a outra família merece ser enganada por conta de sua presunção ou mesmo sobre quem, de fato, está errado. Daí por diante, entramos nessa luta constante para escolher um lado da história e aceitamos as nuances entre o certo e o duvidoso.
Além do roteiro inteligentíssimo, a estética visual da obra se eleva ainda mais com o olhar delicado e visionário de Joon-ho sobre a simplicidade de alguns bairros, em contradição com a burguesia de outros. A luta de classes é a alma da trama e o realizador explora o assunto com beleza e cuidado, mas sem o menor medo de colocar o dedo na ferida exposta que é a desigualdade social na Coréia do Sul.
Sequências brilhantes, como a da enchente, por exemplo, são recheadas de planos longos, luz natural noturna e veracidade na atuação do elenco, que torna a obra verossímil dentro do contexto. O diretor opta por dar mais tempo aos planos, algo que auxilia tanto na exposição do realismo, quanto na construção de suspense a partir da metade filme, quando assume um caminho completamente novo, surpreendente e que se afasta um pouco do drama social que estava sendo construído para entregar momentos de puro horror, no melhor estilo “home invasion” americano.
Assim como os demais elementos do filme, o elenco convence, com atuações dedicadas e honestas, em especial a atriz Cho Yeo-jeong (A Concubina do Imperador), que navega entre o humor e o drama com perfeição. Já Song Kang-ho (Expresso do Amanhã) entrega um misto de sentimentos, que vão da fúria a comédia com intensidade, inclusive, rouba a cena em diversos momentos. De certa forma, cada personagem tem seu momento de brilhar e todos conseguem elevar o nível a cada nova cena, seja quando o humor ácido ocupa lugar ou quando o thriller se intensifica, o elenco sustenta com vigor a proposta irreverente da trama.
Dessa forma, ‘Parasita’ é a expressão máxima da qualidade incontestável do cinema coreano, feito com muita destreza pelo olhar visionário de Bong Joon-ho. O roteiro inteligente, percorre diversos gêneros sem deixar a intensidade da narrativa despencar, como poucos filmes se propuseram a fazer esse ano, sem falar das reviravoltas realmente surpreendentes. Ou seja, é ousado, intenso, divertido e visceral, sem dúvida, um dos melhores e mais criativos filmes da ano, para não dizer da década.