A narrativa cinematográfica consiste na maneira peculiar e única de se contar uma história por meio da linguagem típica do cinema. Mesmo seguindo certos padrões, o que difere uma boa história das demais, é a forma como ela será mostrada através das imagens, algo que, quando bem realizado, envolve um bom trabalho de ritmo e direção. Um defeito e uma qualidade de ‘O Segredo de Davi’, suspense nacional que busca, de diversas formas possíveis, apresentar algo novo em relação à narrativa tão engessada de obras brasileiras.
De fato, o longa-metragem, dirigido por Diego Freitas, foge do arquétipo clássico, tanto dentro do filme de gênero, quanto no cinema nacional, que pouco se arrisca em territórios inexplorados. Na trama, Davi é apresentado como um jovem comum, tímido e que estuda Cinema por paixão, porém, guarda um grande segredo do passado, trauma que altera sua personalidade de “bom moço” para persuasivo, transformando-o em um procurado serial killer na cidade de São Paulo e, como o título sugere, é um filme sobre o Davi, que se propõe, desde o primeiro minuto, a narrar sua história de maneira lírica e poética. Uma vez que embarcamos na proposta, a viagem se torna prazerosa e intrigante, navegando por múltiplos gêneros.
Essa mistura de suspense, fantasia e drama tinha tudo para dar errado, porém, funciona perfeitamente dentro do contexto da trama, exatamente por se arriscar de forma estilosa em um caminho que pode parecer complexo ao espectador acostumado com histórias mastigadas, mas que, no desenrolar, se mostra bem mais simples do que aparenta. O roteiro é bem construído e intrigante, mesmo que relativamente ordinário, ficando para a direção astuta, elaborada e brilhante de Diego Freitas o ar singular que a trama é contada. Os inúmeros planos detalhe são delicados e nos aproximam da intimidade e do universo de Davi, um acerto, tendo em vista um protagonista tão fechado e calado, ressaltados pelo belíssimo trabalho de direção de fotografia e sua criação inteligente de ambientes sombrios, abusando de cores escuras e muita iluminação natural, mesmo em ambientes quase fechados. Fora a mise-en-scène, que transforma cada enquadramento aberto visualmente agradável.
E, para segurar a delicadeza da narrativa, o protagonista se torna a peça fundamental da obra, já que todos os demais personagens e todas as direções que o roteiro toma, giram em torno de si. Por sorte, o ator Nicolas Prattes estreia no cinema com pé direito e segura perfeitamente o fato de ser o “sol” da trama. Sua atuação é expressiva e doce, mas também agressiva e sensual, apresentando um personagem com traumas, angustias e muitas camadas para se explorar, sendo impossível que tenhamos tédio dele. Ponto alto: sua relação enigmática e persuasiva com Jonatas, vivido por André Hendges, que rende cenas intrigantes e quase eróticas.
Apesar dos acertos, a mente de Davi é um labirinto de enigmas e o lado mais sombrio e violento do jovem poderia ter tido um destaque maior. Talvez, o que muitos possam esperar para um filme sobre um serial killer não esteja aqui, pelo menos não de forma descarada e clichê, mas um pouco mais de violência seria bem-vinda e não afastaria a proposta inicial de ser uma história sobre um jovem problemático, vitima de uma família desequilibrada. O drama assume seu lado mais poético e melancólico, que torna a narrativa mais lenta, detalhada e cansativa gradativamente, porém, o clímax resgata a energia inicial e apresenta dois plot twists interessantes, elaborados e satisfatórios dentro da proposta do filme.
Seguindo o ótimo ano do cinema de gênero nacional, ‘O Segredo de Davi’ se mostra uma agradável surpresa, que arrisca na proposta e entrega em trabalho artístico que foge do habitual, concebido com muito estilo e uma direção espetacular, aliás, é para ficar de olho no jovem Diego Freitas e seu cinema conceitual. Enquanto isso, vale se entregar ao sinistro e delicioso mundo imperfeito de Davi.