Stranger Things, a Nostalgia e a interação do público

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Nos últimos anos temos visto várias produções e franquias dos anos 1980 e 1990 voltando à tona e trazendo novos produtos baseados no passado. Em 2015, tivemos a exibição de De Volta para o Futuro nos cinemas celebrando os trinta anos da franquia. Em 2016, foi o ano de Pokémon Go conquistar fãs por todo mundo. Lançado em julho de 2016, o jogo foi o aplicativo mais baixado no ano na Loja Virtual App Store com mais de 500 milhões de downloads ao redor do mundo. Até o dia 7 de dezembro, mais de 8,7 bilhões de quilômetros haviam sido percorridos pelos jogadores. Ainda em 2016, presenciamos a volta de Super Mario, dessa vez em dispositivos mobile. O jogo lançado em dezembro de 2016 apenas para o sistema operacional IOS, já chegou a marca de 80 milhões de downloads e conseguiu a marca de US$ 30 milhões em quinze dias. Por ano, são lançados no cinema pelo menos quatro filmes de super-heróis. Todos esses produtos servem para conquistar as novas gerações como encantar o público mais velho.

Dentro deste cenário nostálgico, a Netflix lançou em julho de 2016 a primeira temporada de Stranger Things. A série se passa nos anos 1980 e relata o desaparecimento de uma criança e a busca de seus amigos, ao mesmo tempo que situações estranhas vão acontecendo na cidade, como um aparecimento de uma menina misteriosa e aparições de monstros. Lendo assim, o roteiro parece ser simples e repetido, se não fossem todas as referências às produções da época que fazem com que o público não somente se sinta ambientado, mas que revivesse suas lembranças da infância.

Diante do grande sucesso da série surgiu a dúvida se o uso desses elementos que remetem à nostalgia do espectador de fato são relevantes ao enredo ou apenas arranjos que estão ali apenas como enfeites, mas em nada interferem no resultado final.

Este artigo tem como objetivo analisar os elementos que foram utilizados na série de forma a despertar o sentimento de nostalgia do espectador, como esses elementos contribuíram para uma melhor experiência com a série, e como a Netflix utilizou seus canais nas redes sociais para promoção e engajamento com o público, criando o diálogo com o público e expectativa para a próxima temporada. Para isso, foi realizada pesquisa descritiva com abordagem qualitativa através de formulário disponibilizado e preenchido por Google Docs, com pessoas que assistiram a série no Brasil.

Este fator se torna de total relevância dentro da cultura, uma vez que as crianças da década de 80 e 90 são agora adultos, com o poder aquisitivo necessário para consumir outra vez esse conteúdo, surge então uma nova forma de produzir conteúdo, aquele que vão suscitar nos Millenials o sentimento que os levem de volta as memórias de sua infância, porém com toda tecnologia e qualidade que hoje nós desfrutamos, seja vendo os super-heróis nas telonas em live-action, que antes habitavam mais os quadrinhos ou séries animadas, ou podendo relembrar cenas de E.T. através de referências em novas séries. É essa geração que paga a conta da Netflix, internet, o cinema, tem o smartphone para baixar Pokémon Go. Foi para eles que esse conteúdo foi criado.

CONCEITO DE NARRATIVA

Antes de analisarmos as características da série é necessário compreendermos os meandros das narrativas. Segundo Rodrigues (2014), sem conhecê-los, “o roteirista pode até fazer um monstrengo atraente, mas, em geral, a produção fracassa, trazendo frustação para todos os envolvidos.” Seja em qualquer segmento: teatro, filmes, séries, novelas, livros, a narrativa deve apresentar o enredo, personagens, tempo, espaço, narrador e responder as perguntas: O que? Por quê? Quando? Onde? Como? Quem?

Stranger Things se passa na década de 1980 e narra a história de Will, um garoto de Montauk, Long Island, que desaperece misteriosamente. Na busca pelo garoto, a polícia, família e amigos acabam mergulhando em um mistério envolvendo forças sobrenaturais, experimentos do governo e uma garota misteriosa.

Podemos observar pela story line da série que a narrativa proposta consegue responder todas essas perguntas. De acordo com Rodrigues (2014), story line é a história-base ao qual os eventos principais se reportam, a origem da qual todas as consequências irão advir.

Uso de Referências

É comum falarmos que “nada se cria, tudo se copia”, e a literatura romana tinha um termo para isso: Contaminatio, que consistia na utilização de dois textos para a criação de um original. O dramaturgo romano Tito Mácio Plauto (254 a.C.-184 a.C.) utilizava esse tipo de criação, que não era considerada plágio, mas sim uma inspiração no texto de outra pessoa, misturando os dois para criar algo novo.

Na Grécia Antiga era comum ocorrer concursos dramatúrgicos onde os autores partiam da mesma história e criavam enredos distintos. Por isso, Jocasta tem finais diferentes nas peças de Sófocles e Eurípedes.

Em entrevista ao site AV Club, os criadores de Stranger Things, os irmãos Matt e Ross Duffer, contaram que, na hora de vender seus serviços a Netflix, exibiram um vídeo com imagens de 26 filmes diferentes em espécie de trailer para mostrar o que eles tinham em mente.

Cinco pré-adolescentes jogando RPG, um deles criado pela mãe, crianças andando pela cidade com suas bicicletas e encontram uma criatura misteriosa que precisam esconder dos adultos. Essas são cenas que se encontram em E.T, mas facilmente podemos confundi-las com cenas de Stranger Things.

Cenas de E.T e Stranger Things onde as crianças disfarçam as criaturas com uma peruca loira.

A relação de “primeiro amor” entre Mike (líder do grupo) e Eleven, lembra um pouco do que vem em “Meu Primeiro Amor”. Goonies, Clube dos Cinco, Conta Comigo, são também filmes dessa época que são referências claras em Stranger Things. Dificilmente seria possível alguma produção nesse sentido nos dias atuais, onde a tecnologia tirou das crianças a ânsia de brincar na rua, ou andar de bicicleta no bairro. Para o teste de elenco da série, foi usado o roteiro de Conta Comigo, em ambas produções um acontecimento trágico fortalece a amizade entre eles.

         

Cena de Stranger Things em referência a Conta Comigo

Os anos 1980 e 1990 foram repletos de filmes de “high-school”, como As Patricinhas de Beverly Hills, Atração Mortal, Ela é Demais. O triângulo adolescente amoroso vivido por Nancy, Jonathan e Steve relembra bem esse tipo de roteiro. Nancy, aliás, é o nome da mocinha em Stranger Things, mas também em A Hora do Pesadelo e ambas se propõem a ir ao outro mundo para enfrentar o vilão.

As Patricinhas de Beverly Hills / Stranger Things

Eleven, garota misteriosa encontrada pelo grupo dos meninos, interpretada por Millie Bobby Brown, é a personagem da série que mais carrega referências, seja no próprio personagem em si ou nas cenas em que aparece. Assim como em A Hora do Pesadelo, Eleven consegue acessar o mundo invertido através da imersão na água e os acontecimentos neste mundo tem consequência no mundo real. A história em quadrinhos X-Men #134 conta a primeira aparição da Fênix Negra e como ela vai aprendendo a lida com seus poderes. Essa HQ aparece no primeiro episódio de Stranger Things, fazendo uma referência aos poderes telecinéticos de Eleven. Além disso, a garota misteriosa carrega características de dois outros personagens de Stephen King: Carrie, que possui habilidades telecinéticas e Charlie, personagem que foi interpretado por Drew Barrymore em Chamas da Vingança, que foge de uma empresa misteriosa que deseja estudar suas habilidades.

Poltergeist, filme de 1982, aparece na série quando Joyce, mãe de Will), o convida para assistir ao clássico da época nos cinemas. Quando ele desaparece, Joyce pode ouvir ele tentando falar com ela através de sons assim como Carol Anne, personagem de Poltergeist.

Além das referências já citadas de E.T, Steve Spielberg tem outras obras referenciadas, como Tubarão e Contatos Imediatos de Terceiro Grau. Em ST, o detetive Hopper muda-se da cidade grande para o interior assim como Brody em Tubarão. Temos também a famosa cena onde a gota de sangue cai na água atraindo assim o monstro, como em Tubarão. A trama onde Joyce é tratada por todos como louca por acreditar nos acontecimentos sobrenaturais, assim como o mote principal de Contatos Imediatos de Terceiro Grau.

O nome do policial que acha o suposto corpo de Will é O’Bannon, referência direta a Dan O’Bannon, escritor do roteiro original de Alien, que também influencia na criação do Demogorgon, monstro da série.

A escolha do elenco também foi baseada na nostalgia, onde vemos Winona Ryder, uma das “queridinhas” dos anos 1990, que estrelou sucessos como “Edward Mãos-de-Tesoura” e “Os Fantasmas se Divertem”.

A trilha sonora de Stranger Things consegue ao mesmo tempo criar o clima tenso necessário a trama e remeter a nostalgia oitentista. Basta observarmos a trilha de Chamas da Vingança, filme inspirado em um livro de Stephen King ou lembrarmos dos usos de sintetizadores comum as bandas da época como The Clash, New Order, Dolly Parton e Toto.

A nostalgia foi pensada nos mínimos detalhes, e até a fonte utilizada nos materiais de divulgação e letreiros exibidos nos episódios tem seu simbolismo. A tipografia ITC Benguiat esteve presente em várias capas de livros de Stephen King, capa do CD “Strangeways Here We Come” (1987) dos Smiths, e até mesmo de Star Trek.

Livro Trocas Macabras de Stephen King

 

 

Capa do álbum “Strangeways Here We Come” dos Smiths

 

Logo da série Star Trek Generations
Logo Stranger Things

 

ANÁLISE DE COMPORTAMENTO DO ESPECTADOR

A seguir analisaremos o comportamento do espectador da série com base em pesquisa realizada através do Google Forms. Foi coletada respostas de mais de 1300 pessoas que assistiram a série, de ambos os sexos entre 14 e 40 anos.

Meio de conhecimento da série

Quando questionados de qual forma tomaram conhecimento da série, a maioria (44%) informou ter conhecido a série através de sites de redes sociais, seguido pelo catálogo da Netflix (30%). Vemos aqui o uso massivo e assertivo que a Netflix faz das plataformas de comunicação.

Identificação das referências

Com relação as referências aos elementos nostálgicos encontrados na série quase todos os entrevistados (95%) afirmaram ter identificado algum item.

 

Ao detalhar quais elementos nostálgicos foram identificados na série, podemos verificar que há uma maior percepção das obras de Steven Spielberg (E.T e outras). Em segundo lugar, fica a trilha sonora marcada fortemente pela trilha de abertura da série, como também “Should I Stay Or Should I Go” da banda The Clash. O design oitentista, outros filmes como Alien, Poltergeist, Os Goonies, Clube dos Cinco e as obras de Stephen King foram facilmente identificados pelos espectadores.

Uma parte dos entrevistados (63%) apontaram também que após assistir a série foram buscar por mais referências além das que já tinham sido identificadas anteriormente.

Após identificarem novas referências, 82% dos respondentes afirmaram ter aumentado sua empolgação com a série. Ainda 91% dos participantes informaram que encontrá-las contribuiu de alguma forma para uma melhor experiência com a série.

Um número interessante é que mesmo tendo procurado as referências, e isso ter proporcionado uma melhor experiência e interesse pela série, menos da metade dos entrevistados buscaram os titulos em que a série se inspirou, para assistir.

94% ainda afirmaram estar bastante ansiosos pela segunda temporada da série.

NOSTALGIA NA PUBLICIDADE

O uso dos elementos nostálgicos na série ultrapassou os limites do roteiro e alcançou a publicidade da série. Como vimos no tópico anterior, 44% dos espectadores pesquisados tiveram conhecimento da série através das redes sociais. Na página da série para o público brasileiro foi utilizado uma lenda muito presente nos anos 80, o mistério em torno das bonecas da apresentadora Xuxa, e as supostas mensagens satânicas ao tocar os discos dela ao contrário.

O vídeo teve mais de 13 milhões de visualizações no Facebook e foi o campeão do Leão de Bronze, premiação para Publicidade e Propaganda no Festival de Cannes.

Para a segunda temporada, a estratégia adotada foi tornar os pôsteres dos filmes usados como referência em pôsteres da série.

Cartaz em referência ao filme Alien, O Oitavo Passageiro

 

Cartaz em referência ao filme Conta Comigo
Cartaz em referência ao filme A Hora do Pesadelo
Cartaz em referência ao filme O Sobrevivente
Cartaz em referência ao filme Tubarão

Cartaz em referência ao filme Chamas da Vingança

Cartaz em referência ao filme Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio

Quanto ao uso de elementos nostálgicos, Pontes (2017) afirma que:

“É algo cíclico. Hoje, estamos falando de anos 80 e 90. Mas nos anos 80, houve um resgate dos anos 60 e final dos 50. A comunicação só reflete aquilo que já está na cabeça das pessoas. Passar argumentos nostálgicos é benéfico em determinadas situações e gera um senso de pertencimento se o timing estiver correto.” (PONTES, 2017)

CONCLUSÃO

Segundo Jenkins (2013):

 “Enquanto a complexidade nos anos 1980 talvez fosse definida em termos da necessidade de oferecer “drama de qualidade” para um consumidor demograficamente de elite, os programas “complexos” de hoje normalmente oferecem entretenimento de gênero, na esperança de atrair os mais jovens, que estavam abandonando a televisão em favor de jogos e outros entretenimentos interativos.”. (JENKINS, 2006, p. 189.)

Usando o artifício da nostalgia a Netflix consegue através de Stranger Things entregar aos fãs das obras da década de 80 um show para que eles possam reviver sua infância e um entretenimento que chama a atenção da nova geração, tornando-se um marco na indústria em termos de audiência e em um roteiro que consegue evocar tantas referências e construir uma única história. Além disso é possível destacar a assertividade que a série tem ao trazer elementos que não são apenas arranjos ou fan service, mas que contribui para a narrativa geral e enriquece a experiência do público com o enredo.

 

REFERÊNCIAS

RODRIGUES, Sônia. Como escrever séries: Roteiro a partir dos maiores sucessos da TV. 2014.

ZUCKERMAN, Esther. The Stranger Things creators want some scares with their Spielberg. Disponível em: <https://tv.avclub.com/the-stranger-things-creators-want-some-scares-with-thei-1798250023>. Acesso em: 26 set. 2017.

JULIO, Karina. Nostalgia está no coração de marcas e consumidores. Disponível em: <http://www.meioemensagem.com.br/home/marketing/2017/03/07/nostalgia-esta-no-coracao-dos-consumidores-e-das-marcas.html>. Acesso em: 26 set. 2017.

24 referências e easter-eggs em Stranger Things. Disponível em: <http://legiaodosherois.uol.com.br/lista/24-referencias-e-easter-eggs-em-stranger-things.html>. Acesso em: 26 set. 2017.

Stranger Things | As 15 maiores referências da série a clássicos do cinema. Disponível em: <https://observatoriodocinema.bol.uol.com.br/series-e-tv/2016/07/stranger-things-as-15-maiores-referencias-da-serie-a-classicos-do-cinema?amp>. Acesso em: 26 set. 2017.

FARINACCIO, Rafael. Comercial de Stranger Things com Xuxa é premiado em Cannes. Disponível em: <https://www.tecmundo.com.br/publicidade/118195-comercial-stranger-things-xuxa-premiado-cannes.htm>. Acesso em: 26 set. 2017.

JENKINS, Henry. Cultura da convergência. Editora Aleph, 2006.

 

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