Notas avulsas sobre Blade Runner 2049

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ALERTA DE SPOILER: O TEXTO A SEGUIR CONTÉM SPOILERS DE BLADE RUNNER 2049!

Blade Runner 2049, além de ser um filme que segue a linha estético-temática de ficção científica neo-noir, construída por Rydley Scott, em 1982, com Blade Runner: O Caçador de Androides, traz consigo atuações excelentes, contornadas por uma trilha sonora que eleva a obra cinematográfica. O silêncio do filme deixa o espectador atordoado, quando irrompe com o som meio explosivo, como uma bomba radioativa. O roteiro une-se a trilha sonora, dos compositores Hanz Zimmer e Benjamin Wallfisch, de maneira muito orgânica, a ponto de tornar-se sedimento estético indispensável para o ritmo do filme. Não consigo imaginar que parte tiraria para diminuir o filme, uma vez que algumas críticas giram em torno da extensão do filme e de seu ritmo mais lento que os blockbusters atuais. Se ele fica mais rápido, sai da estética escolhida, a qual combina como um todo: trilha sonora, ambientação, figurino, composição das personagens, trama narrativa, fotografia, tema…


Dirigido por Denis Villeneuve, tem como argumento uma Califórnia futurista, em que se desenvolveu uma nova espécie de replicantes, mais obedientes aos humanos, consequentemente, mais eficientes no que tange às relações de trabalho. No entanto, K, um Blade Runner que caça replicantes que estão foragidos, ao investigar sobre a replicante Rachel, descobre que ela tem um filho mantido em sigilo. A possibilidade de reprodução por parte dos replicantes é um fator que pode desencadear uma guerra entre a espécie já citada e os humanos, sem precedentes.

Acompanhamos a trama do filme a partir da ação investigativa de K, em torno do chamado milagre, palavra usada pelos replicantes ao descrever o nascimento do filho de Rachel. É interessante como a investigação sobre o fato começa a ser uma investigação sobre o próprio Blade Runner, já que suas lembranças são nuances que levam ao questionamento sobre sua identidade. Completamente tomado pela ânsia de desvendar os fatos, que a essa altura dizem respeito a sua existência, K vai ao encontro do milagre. As suas lembranças são verdadeiras, por isso conflita tanto com a personalidade de alguém subserviente às ordens do imediato, por consequência desse questionamento, a cena em que K é indagado por Rick Deckard sobre seu nome, revela o processo de humanização da personagem, seu nome é Joe, além de ser um ponto de encontro entre o filme de 1982 e o atual. Daí a grande virada do filme, o milagre torna-se polissêmico, em sua vastidão de efeitos. Não é só o nascimento de alguém gerado por um replicante, mas a descoberta que esse alguém (o milagre) trabalha terceirizada para a empresa que constrói os replicantes e cria as lembranças baseadas em suas lembranças (lembranças reais). Muito simbólico o espaço em que ela (o milagre) vive. Presa a uma redoma, como ela mesma indaga, trabalha terceirizando sua força de trabalho como ação de resistência em defesa do pouco que lhe resta de liberdade. Por ter lembranças reais, os replicantes desenvolvem uma personalidade humana, a qual sedimenta um caráter questionador, uma vez que são construídos à semelhança de sua criadora, ao menos no plano psíquico. O milagre é o nascimento, que gera um comportamento subjetivo (próprio de um humano) entre os replicantes, os quais se organizam para conquistarem a liberdade. É nascido, entre eles, esperança. Em suma, se há esperança por algo que se almeja, a vida faz sentido. Essa é a verdadeira procura de K (ou diria Joe?), um sentido para sua vida.

Enquanto construção da personagem, a interação de K com a namorada virtual é reveladora. Quando se descobre que ela faz e fala tudo que o dono (ele) quer, temos uma perfeita representação de sua personalidade, a partir do outro, o que torna-o mais humano, uma vez que o ser é fruto da relação interpessoal, e assim se constitui enquanto sujeito. Ao invés de utilizar um narrador off, ou criar uma voz como pensamento, o diretor, a partir da criação de uma projeção de K, na personagem Joy, cria, ao meu ver, uma solução mais criativa, para que o público saiba o que ele pensa, desse modo, sabemos quem ele (K) é, sem recorrer ao recurso do narrador ou voz off, e incorpora mais um elemento de ficção bem apresentado com relação com a trama.

Há uma batalha final entre K (Joe) e outro replicante que trabalha para Niander Wallace, dono da empresa que constrói os replicantes, a oficial Luv. Essa batalha evidencia o progressivo processo de humanização que o oficial K (Joe) sofre ao arriscar a própria vida para salvar Rick Deckard. No fim da batalha, ele mata a replicante ao mesmo tempo que grita, o que não tínhamos visto até então, como símbolo de seu triunfo, não sobre a replicante, mas pela conquista de liberdade de escolha, como alguém que supera sua antiga identidade para assumir sua humanidade. Ele escolhe seu destino, que é a antítese do que era. Alguém que foi projetado para caçar e matar replicantes foragidos, que sai para eliminar uma criança, que pode desencadear uma guerra, (menção clara à perseguição de Herodes contra Jesus, quando ordena um banho de sangue, na certeza que a vida do menino poderia causar uma revolta popular sem precedentes), luta para salvá-los. A batalha, no plano simbólico, é a concretização do processo de humanização, de construção de identidade, fruto do livre-arbítrio e de uma consciência sobre si. Por esse viés, nada mais humano.

A última cena do filme, o encontro entre pai e filha, é conduzido por Joe, que acompanha Deckard, mas não entra com ele no saguão, onde sua filha (o milagre) está. A cena, bem ao estilo noir, é poética, a neve, a vastidão do silêncio… É perceptível, ao olhar para Joe, sua felicidade, ele cumpre sua jornada, ele constrói, como agente de seu destino, uma história. Quando Deckerd pergunta, antes de entrar para o encontro com sua filha, se ele está bem, temos além da autoconsciência de Joe sobre sua humanidade, a confirmação de um outro, uma vez que Joe é interpelado sobre seus sentimentos, suas emoções.

Todos os detalhes do filme não são aleatórios nem feitos para ser legal ou bonito. São bem pensados, necessários. Cabe um elogio aos roteiristas Hampton Fancher, que conduz a narrativa próxima a obra original de Philip K. Dick, mas tecendo sua estética autoral, ao lado de Villeneuve. Tem muito do expressionismo alemão, reformulado pela estética neo-noir. Muito de Kafka, com O Processo e A Metamorfose, em relação à angústia de não se reconhecer na identidade que lhe é conferida. O filme metaforicamente discute a opressão humana em torno dos mecanismos da modernidade, e, nesse aspecto, mais uma vez, aproxima-se do expressionismo alemão e de alguns escritores que trilharam na ficção científica como Isaac Asimov, Aldous Huxley, George Orwell e Philip K. Dick. É interessante notar que, enquanto a humanidade está toda podre, bem desumana, e trata suas crianças com violência e exploração (nas cenas do orfanato). Os replicantes estão se humanizando com a admiração e cuidado pelas crianças deles, protegendo-as da sociedade. É dessa forma que a crítica ao nosso “progresso” vai se tecendo, desumanizando o homem e humanizando os replicantes (as máquinas). Esses temas são apresentados no filme com imagens e situações, não é jogado em diálogos, são questões prementes ao universo criado e revelam segredos sobre as personagens e a trama. Se fossem apresentados via diálogo, apenas, não fariam parte do mundo que se quer criar. Só é crível se estiver como estrutura formal, ou seja, o filme tem que falar sobre isso também no ambiente, no comportamento das personagens e em todas as esferas de composição da obra cinematográfica. Sem dúvida, um filme que se institui como paradigma, em relação aos procedimentos estético-formais, no âmbito histórico das produções de ficção científica.

Por: Rodrigo Malheiros e Rodolfo Malheiros

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